Paris – lembranças da rue Mouffetard.

Continuarei sempre a afirmar que Paris é, inegavelmente, para mim, a cidade mais linda do mundo. Minha primeira vez por lá foi em 1995, quando logo fui arrebatado por uma paixão fulminante, pois eu não tinha ideia de como Paris é encantadora. Todo esse charme se reflete numa cidade com muitas ruas simpáticas e que atraem cada viajante de forma diferente, seja por detalhes ou reminiscências, e, mesmo que essas recordações fiquem fragmentadas, elas se mantêm na memória. Nas minhas idas a Paris, tenho lembranças de momentos marcantes como quando conheci a rue Mouffetard (clicar para ir ao mapa de sua localização) e seu entorno. Vasculhando minhas fotos antigas, revi alguns expressivos flashs, recordando com nitidez a imagem e a sensação vivida, como, por exemplo, ao sentar-me para descansar na Square Saint-Médard (clicar para ir ao mapa de sua localização) e fotografar crianças, numa alegria enorme, descendo de um escorrega. Vou disponibilizar a foto de 2009.

Desejo neste post relatar com tranquilidade as lembranças dos passeios que fiz pela rue Mouffetard. Mesmo não querendo começar com um pouco de sua história, ontem, antes de me debruçar no computador para contar minhas andanças, comecei uma pesquisa e, lendo de tudo um pouco sobre a formação da rua, vi que já eram 4 horas da madrugada. É nesse pique que escrevo meus posts. Na minha terceira viagem a Paris, em 2009, fiquei hospedado na Avenida Gobelins (clicar para ir ao mapa de sua localização), que praticamente é uma continuação da rue Mouffetard, e “flanando” por esse trecho de Paris fui aos poucos me envolvendo com o movimento e a agitação dessa rua e seus arredores.

Mapa de Paris com destaque para a rue Mouffetard.

Nos posts anteriores sobre Paris, indiquei um desejo de apresentar pontos da cidade que poucos conhecem, pois sinto que vários visitantes optam por fazer viagens rápidas e acabam por conhecer apenas o básico. Porém, Paris tem muito mais que a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo ou a Catedral de Notre-Dame. Espero que minha exposição da rue Mouffetard sirva para que os viajantes percebam que existe uma outra Paris, às vezes pouco explorada, mas que não perde o charme e que, nesse caso específico, tem uma rica história um pouco escondida e que vou pincelar.

Algo muito rico é saber que o trajeto da rue Mouffetard já era conhecido e foi implantado no séc. II ou III, no período da ocupação do Império Romano na região. Os romanos abriram uma estrada que começava às margens do rio Sena, em Lutetia (cidade romana na île de la Cité), até Roma. A estrada começava no local onde hoje se encontra a Petit-Pont, a partir da rue Galande, depois continuava em direção às atuais rue Lagrange, rue de la Montagne Sainte-Geneviève e rue Descartes, e então alcançava a rue Mouffetard, portanto o traçado atual da rua, que é levemente sinuoso e tem ladeiras suaves, já existia há pelo menos 18 séculos. Isso sim é um fato histórico preservado!

No mapa abaixo podem ser vistos alguns traçados de vias importantes construídas sob o Império Romano a partir da île de la Cité. Por exemplo, veja a estrada que sai da ilha e vai em direção sudeste, passando pelo “Mons Cetardus”, que certo seria Mont Cetardus, e depois cruza o rio Bièvre. Achou? Essa é a estrada romana que passava onde hoje temos a rue Mouffetard. Outro detalhe importante é a presença da Arène de Lutèce, uma arena romana que pode ser visitada em Paris e fica bem próxima da rue Mouffetard.

Foto do site: https://fr.wikipedia.org/wiki/ wiki/Lutèce

A rue Mouffetard começa ao norte, então vamos passear com calma por essa rua de pedestre que possui muita variedade de opções de compra e deleite concentrada num só lugar. Encontra-se quase tudo nessa rua onde, ao longo do seu percurso, vemos alguns destaques únicos em Paris. Como é uma rua com subidas e descidas, logo no início há uma leve ladeira até chegar à Place de la Contrescarpe, que se traduz por Praça da Contraescarpa, que é o muro exterior do fosso de um castelo. Na “La Mouffe”, forma gentil de chamar a rua, a praça é um dos pontos importantes com bares, cafés, restaurantes e casas noturnas, por exemplo, uma das mais famosas no passado, com apogeu nos séculos XV e XVI, foi o cabaré e taberna Maison de la Pomme de Pin.

Bem na esquina da Place de la Contrescarpe você vai encontrar um simples restaurante grego onde já estive por mais de duas vezes, pois, além de gostar de Kebab, adoro a comida grega, principalmente quando tem cordeiro e beringela. Em 2018, na minha última ida a Paris, voltei para apresentar o restaurante a um amigo. Alguns turistas não gostam de ver o tal espeto grego com carnes sendo assadas no interior desses locais, às vezes fazem críticas quanto ao asseio, mas eu nunca tive problemas, muito pelo contrário, sempre volto, pois realmente adoro. Então, podem ir sem medo ao L’île de Crete. Ele se localiza na rue Mouffetard, nº 10.

Continuando nosso caminhar pela La Mouffe, se o seu olhar não ficar focado somente para o primeiro piso das lojas, poderá ver uma placa com a indicação do antigo “Le Cabaret du Chiffonnier” no nº 23, hoje ocupado pela Boite IPN (https://ipnpub.com/night-club/ ). Como eles mesmo expõem: “O local foi completamente refeito em 2013 com uma decoração vintage, é um bar e boite imperdível na rue Mouffetard e aberto para que você aprecie suas noites festivas. A cave é composta por partes com tetos abobadados e pedras expostas… Ideal para uma festa!”. 

Ainda estamos no nº 53, mas agora vou dar um pulo e vamos conhecer o prédio e a loja do nº 69. Antes, quero afirmar que estou indicando lojas e prédios por suas características e  história, não significando que aprovo ou indico a qualidade comercial que hoje é oferecida aos viajantes de Paris, pois muitas não conheço quanto ao serviço prestado e tenho lido algumas críticas de clientes. Por exemplo, um blog escreveu o seguinte: 

“A rue Mouffetard já teve seus dias de glória. Hoje ela concentra endereços destinados aos turistas e restaurantes com pratos industrializados e esquentados no microondas. Mas nem por isso deixe de conhecer a Mouffetard e sua região”. (trecho retirado do site: https://www.conexaoparis.com.br/categoria/passear/roteiros-conexao-paris/mouffetard-e-sua-regiao/ )

No nº 69 encontra-se um bar-pub onde, nos séculos XVIII e XIX, houvera um cabaré/boite bem movimentado e que perdurou com muito sucesso de 1848 até o ano de 1882. Já naquela época o bar era conhecido por Le Vieux-Chêne (O velho carvalho), que, por sinal, está pendurado na fachada do segundo andar do prédio, entre as janelas, sendo um símblo para a casa. Hoje o local continua com o mesmo nome, mas a frequência e o estilo mudaram para um bar-pub moderno, para relaxar, escutar música e beber uns drinks. Não vá buscando o glamour dos tempos passados, mas sinta, caso entre no bar, o tanto tempo que existe a construção, pois afirmam que o bar mais antigo de Paris foi aberto nesse local em 1562. 

Continuando a caminhar pela La Mouffe, alcançamos o nº 83, onde se encontra o restaurante “Saveurs de Savoie” que será inevitável conhecer, pois é especialíssimo em “fondue savoyarde”, ou melhor, um prato da culinária oriunda da região dos Alpes Franceses, onde se concentram montanhas com uma altitude média de 1.500 m, logo, os pratos quentes são cruciais. A região da Savoia (em português) é conhecida por suas inúmeras estâncias de esqui e pela boa contribuição para a cozinha francesa, não somente na especialidade culinária do “fondue savoyarde”, mas também por outros pratos próprios da Savoia (clicar para ir ao mapa de sua localização), como o tartiflette (batatas gratinadas com queijo reblochon, fios de bacon ou pedaços de carne de porco, cebolas e vinho branco). Na Savoia são produzidos alguns tipos de queijos raros e nem sempre conhecidos no Brasil, como: Comté, Beaufort, Reblochon, Abondance e um equivalente francês do Gruyère, esse último mais popular no Brasil. 

Na rue Mouffetard existem diferentes pousadas, hotéis, cafés, confeitarias, padarias, lojas especializadas em chocolates, queijos e produtos comestíveis importados, como o café do Brasil. Os edifícios são exemplos muito antigos e interessantes da arquitetura medieval, tornando a experiência de caminhar pela rua numa  viagem a um autêntico mercado medieval. Espalhados por toda parte estão boutiques e lojas de produtos frescos, mas o ponto mais culminante é o famoso Mercado da rue Mouffetard, um bazar ao ar livre que atrai um grande número de visitantes. Você encontrará carnes, legumes, queijos, frutos do mar, doces ou outras delícias mais frescas, como em nenhum outro lugar de Paris.

Antes de chegar às lojas próximas do mercado, vou citar, apenas como informe,  novos pontos comerciais na rua. Um fato comum que ocorre nos últimos tempos em Paris é o surgimento de novo comércio onde existiam estabelecimentos seculares, é o caso da loja de chocolates finos Le Comptoir Ducasse, no nº 104; do restaurante Le Mouffetard, no nº 116; e da loja de doces Les Confiseries de Mouffetard, no nº 119.

O vinho e o queijo são produtos indispensáveis na mesa dos franceses, e na rue Mouffetard não faltam lojas de “vins et fromages”. No número 131 encontra-se a “La Fromagerie”, onde o visitante vai encontrar uma enorme variedade desses produtos. Em 2009, na minha primeira visita à rue Mouffertard, fiquei impressionado com a diversidade de queijos franceses nessa loja, até porque na época não se importava tantos produtos estrangeiros, e assim descobri nomes de queijos que até aquele momento desconhecia, como, por exemplo: Saint-Nectaire, Comté, Bleu d’Auvergne e outros. Infelizmente muitos desses queijos ainda não são comercializados no Brasil e tampouco temos o hábito, como os franceses, de comer queijo junto às refeições diariamente. Eu aprecio em algumas noites um Brie ou Blue de Bresse que consigo comprar por um bom preço no Rio de Janeiro.  

Se você deseja passar um dia visitando uma variedade de lojas e comendo comida fresca feita com produtos saudáveis, então a La Mouffe é o local exato para se visitar, pois há realmente de tudo para todos, tanto no trajeto da rua principal quanto próximo da Igreja de Saint Médard, onde o mercado de rua (Marché Mouffetard) é montado diariamente pela manhã. Vale a pena reservar um tempo para visitar esse fascinante mercado de Paris.

Para terminar esse passeio, no número 141 encontra-se a Igreja de Saint Médard (clicar para ir ao mapa de sua localização), um templo católico que começou a ser erguido no séc. XV, iniciando a partir da obra da nave central da igreja com a sustentação do teto, constituída de abóbadas nervuradas num belo estilo gótico. Entretanto, o término da obra levou três séculos e só ocorreu em 1784 (séc. XVIII), com o embelezamento e finalização da capela da Virgem e a colocação do sino na torre, quase sempre a última etapa nas construções de igrejas. São Medardo foi um padre que viveu no séc. V no norte da França, e consta que no séc. IX uma capela foi construída e dedicada ao santo católico por um grupo de devotos oriundos da Normandia, no mesmo local onde hoje se encontra a Igreja de Saint Médard. Sendo assim, confirma-se a existência dessa igreja desde o séc. IX.  

Ao pesquisar para escrever este texto, descobri que algo surpreendente ocorreu bem próximo da Igreja de Saint Médard, cujo santo é padroeiro dos presos, das pessoas com doenças mentais e dos cervejeiros. Vamos, então, ver a associação.  Em 29 de outubro de 1763, o marquês de Sade foi preso em seu apartamento de solteiro, na rue Mouffetard, a partir de denúncia apresentada por uma prostituta que depôs ter sofrido agressões e jogos de perversão sádicos. Ela relatou que o marquês de Sade a havia obrigado a ir junto com ele, num  domingo, à Igreja de Saint Médard para comungar e depois levar as duas hóstias para serem usadas em atos libertinos no apartamento. Sade, nessa época, tinha 23 anos e já estava casado, mas mantinha o apartamento da rue Mouffetard para encontros amorosos.

O passeio pela La Mouffe chegou ao fim, mas vou disponiblizar fotos recentes do Marché Mouffetard (área do mercado), o autorretrato do marquês de Sade e o Castelo de Lacoste, hoje aberto à visitação e conhecido como “Château de Sade” na cidade de Lacoste, na Provença francesa. A história do mestre do sadismo é impressionante e, para terminar, farei um gancho com ele e a Igreja de Saint Médard. Durante a Revolução Francesa, a igreja foi fechada e o culto, abolido entre 1789 e 1795. Não houve profanação total dos bens sacros, apesar de terem tentado destruí-la. Em 1789, o Castelo de Sade (clicar para ir ao mapa de sua localização) foi quase demolido e deixado em ruínas, e o marquês soube da notícia em Paris. Não pude confirmar, mas talvez ele estivesse em seu apartamento da rue Mouffetard, ao lado da Igreja de Saint Médard, que estava sendo fechada pelos revolucionários. A história acontece de forma concomitante.   

Foto do site: http://www.shuttle-paris.com/photos/photo-street-market-mouffetard.htm

A rue Mouffetard permaneceu, até o início da década de 1960, sendo uma das ruas mais pobres de Paris. Veja a descrição de Léon Daudet em 1930. Mas hoje é uma rua alegre e pujante. Assim é a metamorfose de Paris:

“A Rue Mouffetard é, do ponto de vista da sujeira, da sordidez, do fedor (…) uma das mais notáveis ​​de Paris. Ali, coagulados numa espécie de magma, trapeiros, traficantes, moças, cafetões, puxadores de lã, assexuados, com mal cheiro, cobertos de trapos, com cães de todos os pelos e ratos de todos os tipos. É um enxame localizado, com muitos errantes e miseráveis” (trecho retirado do site: https://fr.wikipedia.org/wiki/Rue_Mouffetard).