Começarei por relatar que tenho ascendência alemã, sou bisneto de Heinrich Friedrich Wilkens, que, com alguma probabilidade, chegou ao Rio de Janeiro entre os anos de 1894 a 1896. Tenho poucas referências, mas me foi passado que ele veio com um primo destinado a trabalhar numa propriedade rural em Nova Friburgo (clicar para ir ao mapa da cidade), porém fugiu do capataz e sumiu na cidade após desembarcar. O primo foi para São Paulo. Ele era camponês da periferia de Hamburgo (clicar para ir ao mapa da cidade), e as evidências revelam que embarcou para o Rio de Janeiro no porto de Wilhelmshaven (clicar para ir ao mapa da cidade), que é banhada pelo Mar do Norte.
Tive muita resistência em conhecer a Alemanha, pois me sentia inseguro em ter que me deparar com situações constrangedoras quanto à existência, mesmo que remota, de posicionamentos e atitudes nazistas na sociedade alemã, mas tudo não passava de devaneios e, pelo menos no norte do país, os alemães já suplantaram o momento nefasto do nazismo. Em 2010, quando visitei o país pela primeira vez, senti que tudo era uma avaliação equivocada, tanto que voltei em 2019. Nas duas viagens à Alemanha visitei a bela Verden, à sudeste de Bremen (clicar para ir ao mapa da cidade), além de conhecer outras cidades da Baixa Saxônia.
Mapa da Baixa Saxônia, norte da Alemanha.
Na última vez em que estive na Alemanha, em 2019, fui de trem de Bremen até Verden (clicar para ir ao mapa da cidade), que fica localizada às margens do rio Aller, com sua orla bem cuidada e vegetação ribeirinha bem preservada (abaixo uma foto do rio). Verden é servida por duas excelentes estradas conhecidas como “autoestradas federais”, e a primeira faz parte do sistema nacional de Autobahn. A A-27 passa na periferia da cidade e a estrada secundária, B-215, a cruza. Creio que seja importante saber, mesmo que não conheça a Alemanha, que todas as estradas são excepcionais. Chegar em Verden de trem é bem cômodo, pois, da estação ferroviária, um visitante se dirige a pé até o centro da cidade, percorrendo a rua principal em frente à estação. Ao caminhar, deparei-me com uma moradia impressionante, toda coberta de hera, onde funciona uma fina loja de bebidas. Creio que ao ver as primeiras fotos já é possível sentir como a cidade de Verden é linda.
Continuei andando na direção esquerda e cheguei numa bela praça – Domplatz – toda arborizada, onde se localiza a Catedral Luterana de Verden. Foi um dia com momentos plenos de sensações de pura felicidade. O primeiro instante feliz foi quando, após entrar na basílica, caminhando lentamente para curtir os belos detalhes do seu interior, me deparei com algo que despertou minha atenção: uma janela com um quadro de natureza morta, a luz entrando por duas frestas laterais, um vaso de planta e um pequeno mural. Ao pesquisar, descobri que nessa ala interna da catedral existiu o antigo claustro de um convento construído no séc. XII. O que mais me impressionou foi a perfeita simetria na disposição dos objetos. Na foto é possível avaliar a singela janela.
A Catedral de Verden (Dom zu Verden) é uma das igrejas góticas mais antigas da Alemanha. Após a ocupação da cidade por Carlos Magno, uma igreja católica foi erguida nesse local em 814, sendo queimada num incêndio em 1268. A igreja gótica edificada com tijolos de arenito, ou pedra marrom, extraídos da cidade de Porta Westfalia, começou a ser construída em 1290 e foi concluída em 1490. Algo inesperado aconteceu nas escavações para a catedral, durante a reforma de 1829, quando foram descobertas 120 sepulturas. Os ossos encontrados no subsolo da catedral foram enterrados no meio da praça da catedral (Domplatz), e por esse motivo, durante muitos anos, o espaço era gradeado. Atualmente é um lindo e amplo parque com sóbrios contornos bucólicos e bastante arborizado.
O segundo momento de emoção e alegria foi quando entrei por uma pequena rua, para melhor apreciar as moradias, e eis que numa das casas uma senhora à janela me saldou com um “bom dia” em alemão. Eu me apresentei em francês, pois o alemão para mim é difícil, ela me respondeu e conversamos um pouco. A senhora alemã me disse que já havia visitado o Brasil e que falava francês, pois viveu em Paris. Para mim, esses momentos são sempre inesquecíveis. Essa ruela se encontra na lateral da Casa Funerária Hehl. Interessante é que escrevo essas letras no mesmo dia em que na Alemanha se comemora os 504 anos da Reforma Protestante, pois em 31 de outubro de 1517 o monge Martinho Lutero afixou, na porta da catedral de Wittenberg, as 95 teses contra o papa Leão X e a Igreja Católica.
Verden, enquanto território, surgiu da fundação da diocese católica, por volta de 850, no séc. IX. Entretanto, somente em 12 de março de 1259 o príncipe-bispo Gerhard de Verden concedeu os privilégios de cidade a Verden, de acordo com a legislação alemã da época. Mas os príncipes-bispos continuaram mantendo o poder por séculos, quase absolutista, sobre a catedral e grande parte das instalações na cidade e territórios adjacentes, devido ao forte poder feudal na região ocupada pelos povos germânicos, principalmente em Verden, onde se assentavam os saxões.
O projeto de formação de um estado-nação unificando a Alemanha ocorreu com as contribuições de diversos geógrafos alemães, como Alexander von Humboldt, Karl Ritter e Friedrich Ratzel (clique e conheça sobre os geógrafos). Esse último, por exemplo, desenvolveu e ampliou o conceito de “espaço vital”, de extrema importância para a concepção estratégica da ampliação territorial da Alemanha no início do séc. XIX, mas que já havia começado a se configurar a partir da criação do Reino da Prússia em 1701. O sentimento nacionalista alemão sempre foi muito forte. Por que estou abordando esse aspecto histórico? Veremos adiante.
O norte da Alemanha, onde se localiza Verden, era a terra da tribo germânica dos saxões, região na época já conhecida como Saxônia, e que mais tarde o Reino da Prússia veio a anexar. Mas o que vou relatar se refere ao espírito nacionalista dos alemães, que em todos os tempos sempre foi muito forte, estando pronto a defender os seus, seja um saxão, um burgúndio, um anglo ou um bávaro. Vamos a história. O “Massacre de Verden” sucedeu no ano de 782, quando os saxões foram forçados à submissão pelos francos, povo da atual França. Como os pagões saxões não acataram a imposição ao catolicismo, um exército com muitos homens, encabeçado por Carlos Magno, o rei dos francos, decapitou 4.500 saxões residentes na cidade de Verden e região, que na época era escassamente povoada. Alguns historiadores imaginam que houve um genocídio e outros colocam em questão se esse fato teve essa magnitute
Esse fato histórico de 782 foi aterrorizante. Hoje, no local onde se deu o “Massacre de Verden”, foram colocadas 4.500 pedras de formato oval, ao longo de um caminho circular de dois quilômetros de comprimento e seis metros de largura, como um memorial aos 4.500 saxões pagãos que foram mortos por Carlos Magno num tribunal, sem dó nem piedade. A construção do Memorial foi entre os anos de 1934 e 1936, período da ascenção de grupos nazistas na Alemanha, que se apropriaram do espaço durante essa época. Entretanto, a partir de 1950 a Igreja Evangélica Luterana começou a administrar o Memorial Sachsenhain – “bosque dos saxões” em alemão – cuja visita vale a pena.
Vamos continuar a conhecer as ruas comerciais, praças, igrejas, prédios públicos e históricos de Verden. Eu afirmo que fiquei bem cansado de tanto caminhar pelas ruas dessa cidade alemã. Nesse passeio visitei a prefeitura, que tem uma sala de apoio ao turista, local que sempre procuro quando chego a uma cidade para recolher mapas e folders com informações importantes. Verden não é tão grande e hoje tem uma população em torno de 27 mil habitantes.
A existência de um prédio usado para ser a prefeitura de Verden foi mencionada pela primeira vez em um documento que data de 1330. E quatrocentos anos depois, em 1733, a municipalidade de Verden substituiu a casa típica alemã em enxaimel, que se deteriorava, pelo edifício de fachada barroca. Em 1875, a área coberta na entrada que dá acesso ao edifício da prefeitura de Verden foi reformada. A bela torre com relógio, que se encontra numa posição mais à esquerda do edifício, foi uma expansão de 1903.
A zona de pedestre da Grobe Strasse, é emoldurada por fachadas de prédios com diferentes estilos, numa cidade com um centro encantador, começa na rotatória da estrada B-215, na entrada da cidade, alcança a praça da Catedral, passando pela prefeitura barroca de Verden, que brilha em tons do branco ao amarelo. Passeando por essa rua, lembro-me de entrar em várias lojas comerciais. Vibrei com os objetos de decoração, enchi os olhos com doces e sorvetes, sentei e saboreei um bom café acompanhado de waffle com mel natural alemão, uma delícia, no Café Venezia. Momento de descanso e leveza!
A cidade de Verden ainda preserva algumas ruínas, torres e vestígios da muralha do período medieval. Por volta de 1210, o príncipe-bispo Yso (com poder de administrar o território de Verden) mandou construir uma muralha ao redor do bispado, na parte norte da cidade, região onde se encontravam uma sede religiosa católica e a moradia dos bispos episcopais. Em alguns pontos, as paredes da muralha chegaram a atingir mais de 5 metros e possuíram quatro portões de entrada. Os muros protegeram Verden até o início do séc. XIX, quando começaram a ser demolidos.
Os muros desapareceram, mas a sede religiosa do norte ainda hoje se encontra de pé. No caso, é a Igreja de São João, ou Paróquia de St. Johanniskirche, que foi inaugurada como um santuário católico em 1150, no estilo românico, com uma única nave e torre de 42 metros de altura, sendo que a fixação do relógio na cúpula da torre somente ocorreu em 1701. Muitos elementos do estilo românico estão bem conservados, sendo a Igreja de São João de Verden um dos edifícios de tijolos de arenito ou pedra marrom mais antigos do norte da Alemanha.
Como você pôde sentir, Verden é uma cidade extremamente fotogênica, com diversos pontos de luz, variedade de cores, diversidade de estilos arquitetônicos e destaque para a sensação de tranquilidade. Mesmo sendo uma cidade bela e com uma rica e profunda história, Verden não recebe aquela multidão de turistas, benéfica para o lugar, mas não tão saudável para um viajante que queira curtir os detalhes tranquilamente. A cidade me arrebatou por essa característica. Quando cheguei bem próximo da “casa do cidadão do campo”, em alemão Ackerbürgerhaus, me dei conta de que, naquele dia, eu era o único turista em Verden, pois ali estavam somente eu e a casa.
A “casa do cidadão do campo” foi construída em 1577, no estético estilo Renascentista alemão, com as paredes em enxaimel, adornada com entalhes ornamentais coloridos, rica em rosetas em leque, folhagens, padrões de estrelas e inscrição com o nome do cliente da moradia, o senhor Henricus Ehlers. É uma das casas mais antigas de Verden, sendo considerada um dos edifícios mais magníficos do Renascimento alemão, que prosperou em maior volume na área do rio Weser. Sendo assim, essa casa é um monumento arquitetônico secular em Verden.
Os saxões sobreviveram ao massacre e, no transcorrer da história, construíram uma cidade com muita sobriedade, com uma fotogenia incrível, com leveza nos detalhes emoldurados das moradias renascentistas e num espaço com muita tranquilidade. Verden (clicar para ver o site da cidade em alemão, mas pode pedir a tradução), mesmo pouco conhecida, é uma cidade a ser visitada para que se possa sentir alegria e felicidade em momentos de uma viagem. Conheça a Alemanha e Verden!
Foto de destaque retirada do site:
https://www.thoeles.de/am-allerpark-verden
Parabéns pela detalhada descrição, que permite ao leitor “viajar” com o autor. Abraço.
Jorge, seguidor do blog. A Alemanha tem muitas surpresas. Eu já fui 2 vezes e devo voltar em maio, pois amigos me chamam. Obrigado polo elogio e divulgue pois eu achei um dos melhores textos descritivo de um lugar que já fiz para o blog.
Wunderbar! Que viagem incrivel pelo local onde viveram seus antepassados!
Annete, seguidora do blog. A Alemanha tem muitas surpresas e sendo o berço do meu bisavô é mais forte, apesar de eu ter só o nome. Eu já fui 2 vezes e devo voltar em maio, pois amigos me chamam. Obrigado polo elogio e divulgue pois eu achei um dos melhores textos descritivo de um lugar que já fiz para o blog.
Excelente, Ronaldo! Belo artigo, muito bem explicado e ilustrado e que nos deixa com muita vontade de conhecer a região. Parabéns!
Helena, seguidora do blog. A Alemanha tem muitas surpresas. Eu já fui 2 vezes e devo voltar em maio, pois amigos me chamam. Obrigado polo elogio e divulgue pois eu achei um dos melhores textos descritivo de um lugar que já fiz para o blog. Um elogio seu é uma honra!!!!
Nunca tinha tido qualquer interesse em conhecer a Alemanha. Ronaldo, vc arrasou!
Mirian, amiga e seguidora do blog. A Alemanha tem muitas surpresas. Eu já fui 2 vezes e devo voltar em maio, pois amigos me chamam. Obrigado polo elogio e divulgue pois eu achei um dos melhores textos descritivo de um lugar que já fiz para o blog.